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artigos acadêmicos

Texto curatorial de Ícaro Ferraz Vidal Junior sobre a individual de Christina Elias "As palavras e as Vísceras" (Lona galeria, São Paulo, 2023)

As palavras e as vísceras

 

Uma casa habitada deixa de ser um espaço para passar a ser aquilo que rodeia um corpo, o que é diferente.

Gonçalo M. Tavares[i]

 

Os processos de criação de Christina Elias inscrevem-se nos limiares entre o corpo e a linguagem. Esta chave de leitura para as obras aqui reunidas tem pouco a ver com o reconhecimento do corpo da artista e de sua escrita, observáveis em alguns dos trabalhos que integram esta que é sua primeira exposição individual na Lona Galeria. Tal diagnóstico emerge, mais profundamente, de uma auscultação desta poética, na qual sobressaem tensões que o pensamento contemporâneo não se cansa de tentar superar, mas que seguem polarizadas nos pares corpo e espírito, natureza e cultura, instinto e linguagem.

Com uma sólida prática nos campos da performance e da dança contemporânea, com destaque para o butô, Elias construiu para si um corpo que opera inequivocamente como território existencial e espaço de criação, colocando em rota de colisão os dualismos citados acima. Através de performances, vídeos e foto performances, a artista cria uma obra estruturada em torno do corpo e da imagem, e atravessada por inquietações relacionadas à domesticidade, ao erotismo e à espiritualidade. Observa-se, nesse núcleo de questões levantadas pelos trabalhos, ressonâncias e diálogos com a produção de artistas de gerações precedentes, como Letícia Parente, Sônia Andrade e Márcia X.

Se as linguagens da performance, do vídeo e da foto performance frequentemente preveem para o corpo um estatuto de catalisador da obra, é preciso reconhecer que tal estatuto se expande na poética de Elias e incide, de modo mais ou menos evidente, sobre toda sua produção. No térreo da galeria reunimos um conjunto inédito de objetos produzidos a partir de diferentes procedimentos e materiais, mas que preservam a inscrição do corpo da artista como núcleo: um corpo que se bifurca, desdobrando-se sobre um plano representacional e outro cruamente material.

As vestes, tricôs e assemblages pendurados em cabides ou moldurados aludem ao corpo ausente, fantasmagórico e, por vezes, eviscerado da artista. Mas estas peças são, ao mesmo tempo, residuais do fazer profundamente corporal que define a prática de Elias. Assim, podemos pleitear que o corpo não é simplesmente um tema que se repete na produção da artista; ele é, mais profundamente, uma ancoragem contígua à materialidade do mundo e que se inscreve, não sem atrito, sobre os materiais que permanecem e se exibem diante do público, quando a ação desvanece.

Os intestinos-colares tricotados pela artista com seus próprios dedos preservam em sua estrutura variações sutis de força e tensionamento dos fios, advindas da duração do próprio processo de feitura das peças. São, em última instância, condensações de tempo, corpo e matéria. Este é, seguramente, um dos aspectos mais destacados da poética de Elias. Mais evidente nos trabalhos que sabemos resultar de ações performáticas, tal aspecto se radicaliza quando pensamos que todo fazer, na obra de Christina, é performático: seja porque ele opera uma transformação no espaço onde o trabalho acontece – como pude observar na recente apresentação da obra Caixa de Música na Estação da Luz –, seja porque ele transforma a própria artista, através da repetição de gestos que se assemelha ao entoar de mantras, modulando sua consciência.  

A relação estabelecida por Elias com a escritura testemunha esta modulação de consciência associada à supressão progressiva das distâncias que separam o corpo, a natureza e o instinto do espírito, da cultura e da linguagem. Algumas performances da artista se iniciam com o canvas ou o papel em branco sobre o chão e a escrita repetitiva de uma mesma palavra – dor, por exemplo, em Maquiagem n. 1 – ou a abertura das comportas do verbo que, despejado pelo corpo sobre a superfície, por horas a fio, alcança a ilegibilidade – como em Autorretrato, Vacas ou Peixe. Em um caso como no outro, a capacidade de discernimento dos significantes, fundamental à comunicação, embota-se, em favor da vertigem afetiva do real do corpo e de suas durações.

As tensões entre o caráter íntimo da elaboração dos afetos da qual resulta um corpo, e o caráter público da exposição deste trabalho e de seus resíduos são exploradas, com argúcia, por Elias. Os signos e materialidades em torno dos quais o corpo da artista transita e tropeça enquanto cria, recordam-nos, em sua domesticidade banal, dos investimentos do poder sobre os corpos das mulheres, ora privatizados sob o pater famílias, ora públicos e sujeitos à toda sorte de violência. A casa imaginária a que nos remetem os objetos e imagens de Elias não encapsula ou protege seu corpo; ela o prolonga e potencializa.

Na articulação fina que opera entre o corpo, a casa e a linguagem, Cristina Elias constrói uma obra que recusa a discursividade e a denúncia como operadores políticos de sua poética que não é, por isso, menos feminista. Sem negligenciar a responsabilidade implicada no gesto artístico de trazer novas imagens e objetos para a esfera pública, Elias opta pelo desenvolvimento de estratégias que nos permitam tatear o absurdo da nossa existência, feita de vísceras e palavras. A casa é um resíduo: instinto e linguagem.

 

Icaro Ferraz Vidal Junior

 

 

 

 

 

[i] TAVARES, Gonçalo M. Atlas do corpo e da imaginação: teoria, fragmentos e imagens. Porto Alegre: Dublinense, 2021.

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